sábado, 31 de janeiro de 2015

O CEUTA ERA O CENTRO DO MUNDO*


SOARES NOVAIS


Foi aos nove anos que fiquei sem os afagos de meu pai.
Vivíamos, então, na Rua de José Falcão, a dois minutos dos “Aliados”. A casa era grande e os seus habitantes uma imensa minoria: minha mãe e meu pai, eu, a Maria do Patrocínio e Pelé – o gato preto, que actuava a guarda-redes nas futeboladas que eu improvisava no longo corredor que unia o meu quarto ao quarto de meus pais.
Subitamente, a casa ficou ainda maior: pouco tempo após a morte de meu pai, a Maria do Patrocínio, que já estava na casa dos “cinquenta”, embeiçou-se por um senhor guarda-freio com bigodinho à Clark Gable e deixou-nos. Desfeita em lágrimas. Ela e nós, claro está. Fiquei eu, minha mãe e o Pelé numa casa que só voltou a ter encanto quando o meu tio Fernando António se juntou a nós.
E foi com ele, com meu tio Fernando António, que comecei a vagabundear pela cidade e que descobri que o “Ceuta” – o Café Ceuta – era o centro do mundo. Do meu mundo. 
Quando o meu tio saía do Banco de Portugal, de onde foi despedido por ordem de Salazar e readmitido por ordem de Salgado Zenha após o “dia inteiro e limpo”, já eu o esperava no “Ceuta”.
Ali, e até à hora de jantar, dia após dia, o meu tio e eu partilhava-mos a mesa com Américo Areal, o professor que fundou a editora ASA; com Carlos Espaím, que fazia das mesas do café a sua “sala de explicações” e ali recebia os seus alunos; com Fernando Fernandes, o “senhor livro”, que trazia da sua “Leitura” todos aqueles que estavam proibidos; e com o senhor Tomaz**, velho poveiro, que por ali arribava, após servir os almoços na sua “Mirita” – uma pequena e modesta cervejaria que ainda hoje tem as suas portas abertas na Rua dos Mártires da Liberdade.
A conversa durava horas. `As vezes em voz alta e muitas vezes em voz baixa. Sobretudo quando pelos vitrais era topada uma ou outra cara desconhecida… 
O “Ceuta”, que na cave tinha e tem mesas de bilhar onde mais tarde dei umas tacadas para gozo dos craques que por ali pontificavam, era, pois, a minha casa preferida.
Assim a modos que um útero quente que me protegia da ausência de meu pai e onde me sentia um menino entre doutores. Daqueles que nos ensinam e com quem aprendemos. Verdadeiramente.
O “Ceuta” era o centro do mundo. Do meu mundo.

* Crónica publicada hoje em "A Viagem dos Argonautas", que em edição especial assinala o 31 de Janeiro.  "O Dia do Porto" foi coordenado pelo argonauta José Magalhães, poeta e fotógrafo, que é também  o autor da foto ao lado.


**Pedi-lhes para virem cá abaixo, ao fundo da página, por duas razões:
– Cinquenta anos depois continuo a sentir a falta dos afagos de meu Pai;
- Foi graças ao senhor Tomaz, que na sua juventude tinha sido pescador e apenas possuía a quarta classe, dono de voz rouca, ar desengonçado, rosto profundamente enrugado e óculos recheados de grossas lentes verde-garrafa , que li “Gaibeus”, de Alves Redol, pela primeira vez. Quando morreu, no princípio dos anos 80 do século passado, o seu esquife estava coberto com a bandeira do PC.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Com o despudor próprio dos canalhas,  Hollande, Cameron, Benjamin Natanyahu e Merkel desfilaram pelas ruas de Paris clamando contra o terrorismo e a favor da Liberdade de Expressão. Eles, os terroristas de "colarinho branco" e censores mores do reino do Capital! O povo de Paris e os que morreram sob as balas assassinas não mereciam tais companhias.


A tempo: a nossa Assunção e o nosso Coelho também por lá andaram, mas como acontece à criadagem seguiam atrás dos patrões.

sábado, 10 de janeiro de 2015

EU SOU TODOS
OS CHARLIES



Eu sou Charlie;

Eu sou todos os Charlies;

Eu sou cada um dos 360 jornalistas e outros trabalhadores que a Controlinveste e o Belmiro despediram no Diário de Notícias, no Jornal de Notícias, na TSF, na Notícias Magazine, no 24 Horas e no Público;
        
Eu sou a senhora Ana que, aos 84 anos, é um dos mil sem-abrigo que vivem nas ruas de Lisboa;

Eu sou o tradutor checo, que passa os dias na biblioteca e a quem pela calada da noite roubam os livros na casa que habita numa das artérias da capital;

Eu sou todas as operárias e operários que viram as suas vidas desfeitas por capitalistas sem coração e sem pátria;

Eu sou a puta que, para alimentar os filhos, se vende na berma da estrada;

Eu sou cada um dos milhares de desempregados que faz fila nos chamados Centros de Emprego;

Eu sou cada um dos pensionistas e reformados a quem pagam 200 euros depois de uma vida inteira de trabalho;

Eu sou cada um dos emigrantes, brancos e pretos, a quem obrigam a trabalhar de sol a sol por um salário de merda;

Eu sou cada um dos milhares de jovens licenciados a quem um imbecil, travestido de governante, mandou emigrar;

Eu sou cada um dos pescadores a quem a União Europeia proíbe de pescar sardinha, condenando-os à fome;

Eu sou cada um dos pequenos e médios agricultores a quem a grande distribuição obriga a dar aquilo que produzem;

Eu sou cada um dos pequenos e médios produtores de leite a quem os hipermerceeiros esmagam;

Eu sou cada uma das mulheres e homens vítimas de violência doméstica;

Eu sou cada um daquelas velhas e velhos que abandonamos;

Eu sou a criança que morre nos braços, leves, ressequidos, famintos, da mãe;

Eu sou cada um daqueles que nos últimos dias morreram por falta de assistência médica nos ... hospitais;

Eu sou cada um dos milhares de trabalhadores a quem o Estado penhorou o salário por uma dívida de 1 euro;

Eu sou cada uma das milhares de crianças refugiadas e que a essa condição foram condenadas pelos poderosos do mundo;

Eu sou cada um dos palestinianos que atira pedras contra o muro que há na Faixa de Gaza;

Eu sou cada um dos negros que a polícia norte-americana mata nas ruas;

Eu sou cada um dos milhares de sem-terra que no Brasil lutam por uma vida digna;

Eu sou cada um dos milhares de africanos mortos pelo vírus de ébola e a quem virámos as costas por isso serdoença de pretos;

Eu sou cada um dos milhões de pessoas a quem violência de Estado, tão má e criminosa quanto a violência religiosa, quer enterrar vivos.


Eu sou Charlie.

Eu sou todos os Charlies.



Também em  RESISTIR.INFO










segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

ALEGREM-SE: já começou a contagem decrescente para o dr. Cavaco passar os seus dias na marquise da sua casinha na Travessa do Possolo.
Por mim, já comecei a riscar os dias no calendário.