Foi aos nove anos que fiquei sem os afagos de meu pai. Vivíamos, então, na Rua de José Falcão, a dois minutos dos “Aliados”. A casa era grande e os seus habitantes uma imensa minoria: minha mãe e meu pai, eu, a Maria do Patrocínio e Pelé – o gato preto, que actuava a guarda-redes nas futeboladas que eu improvisava no longo corredor que unia o meu quarto ao quarto de meus pais. Subitamente, a casa ficou ainda maior: pouco tempo após a morte de meu pai, a Maria do Patrocínio, que já estava na casa dos “cinquenta”, embeiçou-se por um senhor guarda-freio com bigodinho à Clark Gable e deixou-nos. Desfeita em lágrimas. Ela e nós, claro está. Fiquei eu, minha mãe e o Pelé numa casa que só voltou a ter encanto quando o meu tio Fernando António se juntou a nós. E foi com ele, com meu tio Fernando António, que comecei a vagabundear pela cidade e que descobri que o “Ceuta” – o Café Ceuta – era o centro do mundo. Do meu mundo. Quando o meu tio saía do Banco de Portugal, de onde foi despedido por ordem de Salazar e readmitido por ordem de Salgado Zenha após o “dia inteiro e limpo”, já eu o esperava no “Ceuta”. Ali, e até à hora de jantar, dia após dia, o meu tio e eu partilhava-mos a mesa com Américo Areal, o professor que fundou a editora ASA; com Carlos Espaím, que fazia das mesas do café a sua “sala de explicações” e ali recebia os seus alunos; com Fernando Fernandes, o “senhor livro”, que trazia da sua “Leitura” todos aqueles que estavam proibidos; e com o senhor Tomaz**, velho poveiro, que por ali arribava, após servir os almoços na sua “Mirita” – uma pequena e modesta cervejaria que ainda hoje tem as suas portas abertas na Rua dos Mártires da Liberdade. A conversa durava horas. `As vezes em voz alta e muitas vezes em voz baixa. Sobretudo quando pelos vitrais era topada uma ou outra cara desconhecida… O “Ceuta”, que na cave tinha e tem mesas de bilhar onde mais tarde dei umas tacadas para gozo dos craques que por ali pontificavam, era, pois, a minha casa preferida. Assim a modos que um útero quente que me protegia da ausência de meu pai e onde me sentia um menino entre doutores. Daqueles que nos ensinam e com quem aprendemos. Verdadeiramente. O “Ceuta” era o centro do mundo. Do meu mundo.
* Crónica publicada hoje em "A Viagem dos Argonautas", que em edição especial assinala o 31 de Janeiro. "O Dia do Porto" foi coordenado pelo argonauta José Magalhães, poeta e fotógrafo, que é também o autor da foto ao lado.
**Pedi-lhes para virem cá abaixo, ao fundo da página, por duas razões: – Cinquenta anos depois continuo a sentir a falta dos afagos de meu Pai; - Foi graças ao senhor Tomaz, que na sua juventude tinha sido pescador e apenas possuía a quarta classe, dono de voz rouca, ar desengonçado, rosto profundamente enrugado e óculos recheados de grossas lentes verde-garrafa , que li “Gaibeus”, de Alves Redol, pela primeira vez. Quando morreu, no princípio dos anos 80 do século passado, o seu esquife estava coberto com a bandeira do PC.
Porto (1954). Autor, editor, jornalista. Tem prosa espalhada por jornais, livros e revistas. Assinou e deu voz a crónicas de rádio. Foi dirigente do Sindicato dos Jornalistas (SJ) e da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto (AJHLP). Publicou o romance "Português Suave" e o livro de crónicas "O Terceiro Anel Já Não Chora Por Chalana". É um dos autores portugueses com obra publicada na colecção "Livro na Rua", que é editada pela Editora Thesaurus, de Brasília. Tem textos publicados no Resistir.info e em diversos sítios da América Latina e do País Basco. É autor da coluna semanal "Sinais de Fogo" no blogue "A Viagem dos Argonautas". Assina a crónica "Farpas e Cafunés" na revista digital brasileira "Nós Fora dos Eixos".
Nenhum comentário:
Postar um comentário