José Pacheco Pereira*
2014 será um ano de completo, devastador, cruel, sem tréguas, combate pelas palavras. Dizendo palavras digo também ideias e fragmentos de ideias, mensagens virais e manipulações circulantes, explicações e mistificações, estatísticas, estatísticas torturadas, soundbites e frases assassinas.
Propaganda e razão vão estar de lados opostos, manipulação e vontade de verdade (concessão aos que a palavra verdade de per si ofende) vão-se defrontar, como sempre, de forma imperfeita e desigual. Do lado do poder todos os recursos serão utilizados, “comunicação política”, agências de comunicação, assessores, briefings e ministros da propaganda, marketing e “eventos” (tenho a certeza que Portas já pensa num “evento” grandioso e patriótico para festejar a “saída” da troika, por singular coincidência a dias das eleições europeias…).
Esse combate irá travar-se numa parte decisiva na comunicação social, em primeiro lugar na televisão, depois nas “redes sociais” e nos blogues e por fim na imprensa escrita. Alguns jornalistas ficam muito irritados quando afirmo (e vou repetir) que um dos problemas dos dias de hoje na vida pública em Portugal é a facilidade com que a comunicação social absorve a linguagem do poder e a reproduz como sendo sua, assim legitimando-a porque lhe dá um sujeito neutro, tornando-a uma verdade universal. Este processo não é simples, não se trata de estar “a favor” ou “contra” o Governo, nem sequer de actuar em função de preferências ou hostilidade partidárias, porque se fosse assim seria mais fácil identificar o que se passa.
Há um papel importante para os gostos e os ódios pessoais, mas isso faz parte do meio jornalístico desde sempre. O hábito é ajustar contas em função das simpatias ou antipatias pessoais entre jornalistas, políticos e outras personagens do espaço público, muito mais eficaz como explicação do que as simpatias partidárias. A promiscuidade entre jornalistas e “fontes”, a troca de favores e cumplicidades, as amizades e os amores, as vinganças e elogios interessados passam-se de modo subterrâneo, mas explicam muito da atitude de jornalistas face aos detentores do poder político, actual ou passado. Ora pouca gente cultiva mais a sua relação com os jornalistas do que os grupos dirigentes das “jotas” dos partidos, seja do PS ou do PSD, cuja proximidade social, cultural, de mentalidade e modo de vida, é quase total, e cuja partilha geracional de vocabulário (escasso), fragmentos de ideias, mitos e (in)experiências é igualmente comum.
Muitas vezes estas empatias têm a ver com o bem escasso da “influência” e os conflitos pela capacidade de a ter, outras vezes é inveja por ganhos e recursos. O problema é que, sendo esta uma explicação importante para muito do que se publica e se diz, ainda por cima em meios muito pequenos, que comunicam entre si, e onde está sempre alguém no lugar pretendido por outrem, ela é invisível para a comunidade dos consumidores dos media, que desconhecem muitos dos meandros que estão atrás dos bastidores. Explicava muita coisa, como se percebeu quando do “caso Relvas”, mas é na maioria dos casos impossível de usar.
Há cada vez mais jornalistas e jornalistas-comentadores mais próximos do poder, partilhando do mesmo pensamento de fundo associado ao “ajustamento”, embora possam discordar e algumas vezes serem até agressivos na crítica a aspectos de detalhe da governação. O problema é que a concordância de fundo é muito mais importante do que a discordância no detalhe e o núcleo central de legitimação do poder permanece intocável.
A mentalidade adversarial da comunicação social, já em si mesmo uma fragilidade, deu lugar a uma enorme complacência com o poder. Uma das razões desta proximidade de fundo tem a ver com o papel cada vez mais destacado da imprensa económica em tempos em que a “crise” é dominantemente explicada apenas pelas suas variantes económicas. O predomínio da economia levou a um avolumar do “economês”, uma variante degradada quer da economia, quer da política. E esse “economês” favorece os argumentos de “divisão” que têm tido muito sucesso no discurso público, fragilizando, no conflito social, umas partes contra as outras. Este discurso da divisão é uma novidade desta crise e uma das principais vantagens da linguagem do poder.
Colocar novos contra velhos, empregados contra desempregados, trabalhadores privados contra funcionários públicos, reformados da Segurança Social contra pensionistas da CGA, sindicalizados contra “trabalhadores”, grevistas contra a “população”, e muitas outras variantes das mesmas dicotomias, tem tido um papel central no discurso governamental, que encontra na “equidade” um dos mais fortes elementos de legitimação. Se se parar para pensar, fora dos quadros das “evidências” interessadas, verifica-se até que ponto uma espécie de neomalthusianismo grosseiro reduz todas estas dicotomias a inevitabilidades a projecções sobre o “futuro” muito simplistas e reducionistas e que recusam muitos outros factores que deviam entrar na avaliação dessa coisa mais que improvável que é o “futuro”. À substituição da política em democracia, com o seu complexo processo de expectativas e avaliações, traduzidas pelo voto, ameaçando, como dizem os “ajustadores”, pela “politiquice”, ou seja, as eleições, a “sustentabilidade” das soluções perfeitas de 15 ou 20 anos de “austeridade”, soma-se a completa falta de pensamento sobre o modo como as sociedades funcionam, que o “economês”, que é má economia, não compreende.
A redução das análises correntes a este “economês”, sem política democrática, nem sociedade, revela-se num fenómeno recente que é a proliferação de livros de jornalistas com as receitas para salvar o país, quase todos sucessos editoriais. Eles mostram a interiorização profunda, em muitos casos prosélita, noutros mais moderada, da linguagem, explicações, legitimações, amigos e adversários, proto-história e factos seleccionados, do discurso do poder sobre a crise.
A isso acrescentam propostas em muitos casos inviáveis em democracia e num Estado de direito, e cuja eficácia, mesmo nos seus termos, está por demonstrar.
Esses livros favorecem a ideia de que o “vale-tudo” que está por detrás da continuada sucessão de legislação inconstitucional do Governo poderia ser a solução ideal “para Portugal”, que infelizmente é “proibida” ou pela “resistência corporativa” dos interesses ou por entidades como o Tribunal Constitucional, ou mesmo pela “ignorância” e impreparação da opinião pública. Escreve-se como se não houvesse interesses legítimos que o Estado de direito acautela, ou práticas brutais de transferência de rendimentos e recursos, que tem sempre quem ganha e quem perde, cujos efeitos na conflitualidade social tornam por si próprio insustentável a sua manutenção. São de um modo geral muito complacentes com os de “cima” e muito críticos dos de “baixo”, e dão pouca importância aos efeitos de exclusão e diferenciação social que as suas políticas propõem, mas, acima de tudo, ignoram sistematicamente que elas falham no essencial, ou seja, que são ineficazes para os objectivos pretendidos.
A solução é, em vez de mudar as políticas, acrescentar-lhes mais tempo e é por isso que o coro da “austeridade” para décadas é cada vez maior e será ruidoso depois da troika mandar aterrando cá, para mandar a partir de Bruxelas. Aliás, será um interessante exercício ver o que nos diziam em 2011, sobre os resultados que já se deveriam ver em 2012, e o milagre de uma economia pujante “libertada do Estado”, já em 2013, e que agora é de novo prometida em 2014. Se diminuíssemos a dívida e défice em função das “intenções proclamadas” para o ano seguinte, já estávamos a cumprir o Pacto Orçamental.
Alguns jornalistas sabem que é assim, que a linguagem do poder se estabeleceu de forma acrítica na comunicação social, e aqui e ali tentam funcionar a contracorrente. Mas as redacções estão muito degradadas, com meios muito escassos, o trabalho precário, barato ou quase gratuito, pouco qualificado, prolifera e o emprego está sempre em risco, pelo que a prudência exige muita contenção. Por outro lado, o papel crescente da “comunicação” profissionalizada, a que Governo e empresa, recorrem cada vez mais, exerce uma pressão considerável no produto final da comunicação social, em particular na informação económica. A isto se junta o proselitismo na Rede, nos blogues e no Facebook, nos comentários anónimos, às claras ou em operações “negras” de assessores militantes e amigos dos partidos do Governo, à procura de um lugar ao sol, ao exemplo do que um destes operacionais revelou recentemente numa entrevista à Visão.
Por isso, neste combate pelas palavras de 2014, o Governo parte em vantagem, não porque tenha razão, mas porque tem mais meios e, pior ainda, conta com a força que num país pequeno, fragilizado, com uma classe média empobrecida, com uma opinião pública débil, tem o discurso que vem do lado do poder. Já acontecia com Sócrates, acontece com Passos Coelho.
2014 será um ano de completo, devastador, cruel, sem tréguas, combate pelas palavras. Dizendo palavras digo também ideias e fragmentos de ideias, mensagens virais e manipulações circulantes, explicações e mistificações, estatísticas, estatísticas torturadas, soundbites e frases assassinas.
Propaganda e razão vão estar de lados opostos, manipulação e vontade de verdade (concessão aos que a palavra verdade de per si ofende) vão-se defrontar, como sempre, de forma imperfeita e desigual. Do lado do poder todos os recursos serão utilizados, “comunicação política”, agências de comunicação, assessores, briefings e ministros da propaganda, marketing e “eventos” (tenho a certeza que Portas já pensa num “evento” grandioso e patriótico para festejar a “saída” da troika, por singular coincidência a dias das eleições europeias…).
Esse combate irá travar-se numa parte decisiva na comunicação social, em primeiro lugar na televisão, depois nas “redes sociais” e nos blogues e por fim na imprensa escrita. Alguns jornalistas ficam muito irritados quando afirmo (e vou repetir) que um dos problemas dos dias de hoje na vida pública em Portugal é a facilidade com que a comunicação social absorve a linguagem do poder e a reproduz como sendo sua, assim legitimando-a porque lhe dá um sujeito neutro, tornando-a uma verdade universal. Este processo não é simples, não se trata de estar “a favor” ou “contra” o Governo, nem sequer de actuar em função de preferências ou hostilidade partidárias, porque se fosse assim seria mais fácil identificar o que se passa.
Há um papel importante para os gostos e os ódios pessoais, mas isso faz parte do meio jornalístico desde sempre. O hábito é ajustar contas em função das simpatias ou antipatias pessoais entre jornalistas, políticos e outras personagens do espaço público, muito mais eficaz como explicação do que as simpatias partidárias. A promiscuidade entre jornalistas e “fontes”, a troca de favores e cumplicidades, as amizades e os amores, as vinganças e elogios interessados passam-se de modo subterrâneo, mas explicam muito da atitude de jornalistas face aos detentores do poder político, actual ou passado. Ora pouca gente cultiva mais a sua relação com os jornalistas do que os grupos dirigentes das “jotas” dos partidos, seja do PS ou do PSD, cuja proximidade social, cultural, de mentalidade e modo de vida, é quase total, e cuja partilha geracional de vocabulário (escasso), fragmentos de ideias, mitos e (in)experiências é igualmente comum.
Muitas vezes estas empatias têm a ver com o bem escasso da “influência” e os conflitos pela capacidade de a ter, outras vezes é inveja por ganhos e recursos. O problema é que, sendo esta uma explicação importante para muito do que se publica e se diz, ainda por cima em meios muito pequenos, que comunicam entre si, e onde está sempre alguém no lugar pretendido por outrem, ela é invisível para a comunidade dos consumidores dos media, que desconhecem muitos dos meandros que estão atrás dos bastidores. Explicava muita coisa, como se percebeu quando do “caso Relvas”, mas é na maioria dos casos impossível de usar.
Há cada vez mais jornalistas e jornalistas-comentadores mais próximos do poder, partilhando do mesmo pensamento de fundo associado ao “ajustamento”, embora possam discordar e algumas vezes serem até agressivos na crítica a aspectos de detalhe da governação. O problema é que a concordância de fundo é muito mais importante do que a discordância no detalhe e o núcleo central de legitimação do poder permanece intocável.
A mentalidade adversarial da comunicação social, já em si mesmo uma fragilidade, deu lugar a uma enorme complacência com o poder. Uma das razões desta proximidade de fundo tem a ver com o papel cada vez mais destacado da imprensa económica em tempos em que a “crise” é dominantemente explicada apenas pelas suas variantes económicas. O predomínio da economia levou a um avolumar do “economês”, uma variante degradada quer da economia, quer da política. E esse “economês” favorece os argumentos de “divisão” que têm tido muito sucesso no discurso público, fragilizando, no conflito social, umas partes contra as outras. Este discurso da divisão é uma novidade desta crise e uma das principais vantagens da linguagem do poder.
Colocar novos contra velhos, empregados contra desempregados, trabalhadores privados contra funcionários públicos, reformados da Segurança Social contra pensionistas da CGA, sindicalizados contra “trabalhadores”, grevistas contra a “população”, e muitas outras variantes das mesmas dicotomias, tem tido um papel central no discurso governamental, que encontra na “equidade” um dos mais fortes elementos de legitimação. Se se parar para pensar, fora dos quadros das “evidências” interessadas, verifica-se até que ponto uma espécie de neomalthusianismo grosseiro reduz todas estas dicotomias a inevitabilidades a projecções sobre o “futuro” muito simplistas e reducionistas e que recusam muitos outros factores que deviam entrar na avaliação dessa coisa mais que improvável que é o “futuro”. À substituição da política em democracia, com o seu complexo processo de expectativas e avaliações, traduzidas pelo voto, ameaçando, como dizem os “ajustadores”, pela “politiquice”, ou seja, as eleições, a “sustentabilidade” das soluções perfeitas de 15 ou 20 anos de “austeridade”, soma-se a completa falta de pensamento sobre o modo como as sociedades funcionam, que o “economês”, que é má economia, não compreende.
A redução das análises correntes a este “economês”, sem política democrática, nem sociedade, revela-se num fenómeno recente que é a proliferação de livros de jornalistas com as receitas para salvar o país, quase todos sucessos editoriais. Eles mostram a interiorização profunda, em muitos casos prosélita, noutros mais moderada, da linguagem, explicações, legitimações, amigos e adversários, proto-história e factos seleccionados, do discurso do poder sobre a crise.
A isso acrescentam propostas em muitos casos inviáveis em democracia e num Estado de direito, e cuja eficácia, mesmo nos seus termos, está por demonstrar.
Esses livros favorecem a ideia de que o “vale-tudo” que está por detrás da continuada sucessão de legislação inconstitucional do Governo poderia ser a solução ideal “para Portugal”, que infelizmente é “proibida” ou pela “resistência corporativa” dos interesses ou por entidades como o Tribunal Constitucional, ou mesmo pela “ignorância” e impreparação da opinião pública. Escreve-se como se não houvesse interesses legítimos que o Estado de direito acautela, ou práticas brutais de transferência de rendimentos e recursos, que tem sempre quem ganha e quem perde, cujos efeitos na conflitualidade social tornam por si próprio insustentável a sua manutenção. São de um modo geral muito complacentes com os de “cima” e muito críticos dos de “baixo”, e dão pouca importância aos efeitos de exclusão e diferenciação social que as suas políticas propõem, mas, acima de tudo, ignoram sistematicamente que elas falham no essencial, ou seja, que são ineficazes para os objectivos pretendidos.
A solução é, em vez de mudar as políticas, acrescentar-lhes mais tempo e é por isso que o coro da “austeridade” para décadas é cada vez maior e será ruidoso depois da troika mandar aterrando cá, para mandar a partir de Bruxelas. Aliás, será um interessante exercício ver o que nos diziam em 2011, sobre os resultados que já se deveriam ver em 2012, e o milagre de uma economia pujante “libertada do Estado”, já em 2013, e que agora é de novo prometida em 2014. Se diminuíssemos a dívida e défice em função das “intenções proclamadas” para o ano seguinte, já estávamos a cumprir o Pacto Orçamental.
Alguns jornalistas sabem que é assim, que a linguagem do poder se estabeleceu de forma acrítica na comunicação social, e aqui e ali tentam funcionar a contracorrente. Mas as redacções estão muito degradadas, com meios muito escassos, o trabalho precário, barato ou quase gratuito, pouco qualificado, prolifera e o emprego está sempre em risco, pelo que a prudência exige muita contenção. Por outro lado, o papel crescente da “comunicação” profissionalizada, a que Governo e empresa, recorrem cada vez mais, exerce uma pressão considerável no produto final da comunicação social, em particular na informação económica. A isto se junta o proselitismo na Rede, nos blogues e no Facebook, nos comentários anónimos, às claras ou em operações “negras” de assessores militantes e amigos dos partidos do Governo, à procura de um lugar ao sol, ao exemplo do que um destes operacionais revelou recentemente numa entrevista à Visão.
Por isso, neste combate pelas palavras de 2014, o Governo parte em vantagem, não porque tenha razão, mas porque tem mais meios e, pior ainda, conta com a força que num país pequeno, fragilizado, com uma classe média empobrecida, com uma opinião pública débil, tem o discurso que vem do lado do poder. Já acontecia com Sócrates, acontece com Passos Coelho.
*Historiador
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