quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Mestre do rigor e baluarte da dignidade

 No passado dia 17, realizou-se, em Pegarinhos (Alijó), terra natal do Professor José Morgado (1921-2003), uma romagem à sua campa e uma sessão na Casa do Teatro. Intervieram César Príncipe, António Machiavelo, ex-aluno e assistente do José Morgado na Universidade do Porto e Paulo Morgado, filho do homenageado. Foi ainda lida uma comunicação de Aurélio Santos, do Conselho Nacional da URAP, entidade organizadora da evocação.


As homenagens não têm lugar único. Em todo o lado se pode homenagear. Neste espaço de repouso jaz um homem que sempre foi inquieto e inquietador e que encarou a vida académica e cívica com o máximo de exigência e de intransigência. Isto é: foi mestre do rigor e baluarte da dignidade. Afastado do ensino, nunca se afastou do aprofundamento e da transmissão do saber. O saber nunca o quis só para si. Esforçou-se por universalizar o conhecimento. Poderia ter sido um vencedor solitário. Preferiu ser um derrotado solidário. Sete vezes preso, jamais desistiu de ser livre e de ambicionar que o Povo Português se tornasse igualmente livre. Exilado no Brasil, continuou a luta por Portugal e pela Civilização. Desde 25 de Abril de 1974 até 9 de Outubro de 2003, manteve plena coerência e austera decência. Nunca se calou em ditadura. Nunca se desarmou em democracia. É este Português Maior e Homem Inteiro que é indispensável recordar e retomar na construção de uma sociedade justa. O presente conta com o passado de José Morgado. Assim, esta homenagem não é apenas uma romagem, mas uma visita de combatentes a um companheiro de muitas jornadas, que só tombou por força da biologia, que jamais soçobrou pela ideologia. De José Morgado, com todo o orgulho, diremos que caminha a nosso lado. Ele que, em 1957, foi proibido pelo Tribunal Plenário do Porto de acompanhar pessoas de má conduta política. Pessoas como nós. Como tantos e tantos milhares de portugueses que não se vergaram nem vergam perante a lei da violência como razão de Estado, perante a ignorância como estratégia de controlo social, perante a corrupção como sistema de poder. José Morgado estará onde nós estivermos contra as arbitrariedades, as insanidades e as iniquidades.

 Mas onde estarão os inferiores culturais e políticos que, de 1947 a 1974, perseguiram um superior matemático e um pedagogo revolucionário? Onde estão os inferiores culturais e políticos que, em 1999, não tiveram coragem de recusar a proposta de atribuição da Medalha de Ouro da Cidade a José Morgado, que fora vice-reitor da Universidade do Porto, mas que não procederam à sua entrega em vida? A História não os absolverá. José Morgado passou pelo Aljube e por Caxias, foi espancado, perdeu o emprego e sofreu o exílio e, no entanto, ei-lo, como um sol subterrâneo a iluminar os nossos pés, a nossa estrada, o caminho da justiça social e da independência nacional. Ei-lo, entre nós, como em 1952: então manifestou-se contra a adesão de Portugal à NATO; em 1998 contra o bombardeamento da Jugoslávia pela NATO. Ei-lo, como símbolo, entre nós, nas marchas de protesto nos negros dias de um Portugal ocupado e humilhado. Cidadão da Liberdade, da Igualdade, do Progresso e da Paz, José Morgado estará onde estiver a indignação dos trabalhadores sem presente, dos jovens sem futuro e dos idosos a quem até já roubam o passado, dos lavradores a quem mandaram abandonar a terra, dos pescadores a quem tiraram o mar, dos intelectuais que são convidados a não pensar e a não agir.

Amanhã, no tão urgente e claro amanhã que o país precisa, o sábio humanista de Pegarinhos será matéria obrigatória nas escolas portuguesas. A criança modesta que partiu de uma aldeia para enriquecer o Mundo tornou-nos mais próximos da sabedoria, da fraternidade e da esperança. Regressaremos às nossas localidades e às nossas actividades com energia renovada e redobrada por esta romagem a uma terra de amendoeiras e fortalezas. Não é em vão que certos vultos são evocados: ficaremos mais responsáveis depois da passagem pela última morada de José Morgado. É uma das virtudes dos que morrem mas não desaparecem: a sua obra e o seu exemplo não se sepultam.



 César Príncipe

Nenhum comentário:

Postar um comentário