Rui Pelejão*
O pior de um país não é viver de estômago vazio enquanto a camarilha do costume arredonda a pança. O problema de Portugal é a coluna vertebral.
Um país curvado, de espinha sinuosa, chapelinho na mão e respeitinho que é muito bonito.O pior de um país não é viver de estômago vazio enquanto a camarilha do costume arredonda a pança. O problema de Portugal é a coluna vertebral.
Um país dobrado, vergado, calado que macaqueia indignação nas redes sociais, mas que na sua essência é um país corcunda com o fardo da culpa que lhe querem carregar.
É um país de marrecos aos berros e de capatazes sem dó.
Neste país amordaçado e manietado a liberdade definha e a liberdade é o pão do espírito.
É dessa fome que morreremos todos, é dessa forma triste que iremos todos para a quinta casa se enfiarmos a canga e a mordaça que a corja impostora dos capatazes do liberalismo nos quer afivelar.
Por isso e por muito mais, o gesto e a voz de Fernando Paulouro Neves emerge no silêncio das indignações politicamente corretas.
O histórico diretor do Jornal do Fundão anunciou que iria renunciar ao seu cargo porque “o poder financeiro comanda tudo e o jornalismo tornou-se numa área de difíceis equilíbrios, onde não faltam sujeitos sem escrúpulos, capazes de vender a alma ao demónio com a justificação de salvar o negócio”.
Com a reverenda autoridade que lhe dá uma carreira de 40 anos ao serviço do Jornal do Fundão, da sua região, da cultura, do país e da liberdade, Fernando Paulouro ousou erguer a voz e denunciar pressões empresariais, contrárias ao estatuto editorial de um jornal que o seu tio António Paulouro fundou e que ele prosseguiu, não como mero curador, mas como verdadeiro artífice e ideólogo.
Fê-lo publicamente na apresentação do seu livro “Crónicas de um país relativo” que reúne precisamente a sua versátil e acutilante prosa – a primeira linha de combate, a armadura intelectual a um Jornal que sempre foi santuário da livre expressão, da pluralidade e refúgio de escritores e homens de cultura acossados pelos capatazes de bota engraxada, doutros e destes tempos.
O que leva Fernando Paulouro, um homem que dedicou toda a sua vida ao JF, a erguer a sua voz para denunciar aquilo que muitos calariam?
Essa é uma questão que a Controlinvest – a empresa proprietária do Jornal do Fundão – terá obrigatoriamente que esclarecer – sob o risco de desbaratar nuns dias aquilo que levou décadas a construir e a consolidar – a confiança dos leitores.
E sem essa, meus caros senhores, não há publireportagens nem fretezinhos que valham a esse “negócio” e o próximo obituário que cobrarem é precisamente o do Jornal de que não são donos, mas meros “inquilinos”.
Porque o JF é dos milhares de leitores espalhados pelo mundo que nas suas páginas reencontram não só o apelo da sua mais profunda identidade, mas também reflexão, pensamento e interrogações sobre o tempo em que vivem.
O JF é do meu avô, que sentado na cadeira do lar da velhice aguça o resto da vista para ler as gordas; o JF é do meu jovem amigo Mário, que faz filmes, trabalha num hostal em Lisboa e pede o JF emprestado ao pai para ler as crónicas do Fernando; o JF é do emigrante que na Suiça o recebe religiosamente para ver o resultado dos distritais e as novidades de terras tão distantes como as Aranhas ou Segura.
Os senhores dos negócios podem estar convencidos que o JF é deles, mas estão copiosamente enganados. Só será deles enquanto honrarem o compromisso com os leitores.
Um compromisso ético e de integridade. Se a empresa proprietária do JF quebrar esse compromisso, verá rapidamente que nenhuma gloriosa “modernização” lhe valerá.
É por isso que saúdo e admiro profundamente o gesto de Fernando Paulouro. Num tempo em que a coragem é apenas figura de retórica, Fernando Paulouro teve a coragem de não se acomodar a uma reforma ao som dos bombos laudatórias, da homenagem bacoca, da coluna no jornal reservada a antigos diretores, à avençazita, ao livrinho de memórias e ás tainadas com o poder.
Um gesto tão tremendo e solitário como o do Fernando Paulouro é um hino à liberdade – à dele e à nossa.
Num país de marrecos e capatazes, reino da trafulhice organizada, ver um jornalista com 40 anos de carreira abandonar a sua trincheira com a coluna intacta é um sinal para não nos rendermos. Bem haja Fernando Paulouro por nos teres alertado.
Está mais do que na hora de aguçar as baionetas!
PS: Gostava de saber se a hiperativa ERC do Sr. Magno tem alguma coisa a dizer sobre este assunto ou se está muito ocupada com as tricas de starletes de TV e de cervejeiros e seus donos. Provavelmente o Fundão fica demasiado longe do Pabe…
PS2: Desejo ao Nuno Francisco, novo diretor do JF, a melhor das sortes e a força e coragem para defender o património afetivo e de liberdade que recebe. Sei que não será um mero curador e que defenderá o “nosso” Jornal do Fundão. Conta com as nossas baionetas!
*Crónica publicada no A23 on-line
Nota do editor: O "Jornal do Fundão" é uma referência do Jornalismo. Foi sempre. Mesmo no tempo do Fascismo. Por acção do seu fundador e histórico Director António Paulouro. O "JF" contribuiu para formar melhores leitores e melhores cidadãos. Tal qual aconteceu com o "Comércio do Funchal" e o "Notícias da Amadora". Lamento a saída de Fernando Paulouro de um Jornal que, sob a sua direcção, soube honrar o legado de António Paulouro. Lamento que o poder financeiro, sob a batuta de um qualquer Leite, faça aquilo que a Ditadura não conseguiu e o queira transformar em mais um produto sem "alma" e recheado de lixo informativo.
Soares Novais
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