domingo, 23 de dezembro de 2012

Festas felizes para os de sempre.


Soares Novais


1 - Palavra de honra, gostava de ter a capacidade de olhar o “qwert” do meu computador e só escrever palavras bonitas. Parir prosa sem dor e  escrever  frases como esta, por exemplo:  “Meu caro leitor tenha Festas Felizes e um óptimo 2013”.
Mas não sou capaz. Por mais que tente. Por mais que queira ser politicamente correcto, seja lá isso o que for.
A profissão de jornalista e o coração não me concedem tal bênção.
Entendam-me:
- Noticiei naufrágios de pescadores da Póvoa e das Caxinas e escutei palavras de raiva às suas viúvas e filhos;
- entrevistei  demagogos e mentirosos;
- ouvi  bandidos de colarinho branco a discursar sobre a honradez;
- testemunhei  a ascensão e queda de ídolos do futebol;
- fui  voz e ouvidos dos pagadores de promessas em Fátima e de operários abandonados à porta de fábricas que os patrões encerraram sem aviso prévio;
- fixei os rostos de dor de mães sem recursos para alimentarem os seus filhos.
Conheço a vida. Tal qual ela é. Sem máscaras e sem pudor. Sem galas televisivas de Natal, sem abraços, beijinhos e palmadinhas nas costas daqueles que são “os homens esquecidos de deus”, como diz  Albert Cossery*  e do qual reproduzo este breve passo:
(...)
— A festa não é para nós, meu filho —, disse ele.
— Nós somos pobres.
O garoto chorou, chorou amargamente.
— Não me interessa; quero um carneiro.
— Somos pobres —, repetiu Chaktour.
— Somos pobres porquê? —, perguntou a criança.
O homem reflectiu antes de responder. Depois de tantos anos de indigência tenaz, ele próprio não se lembrava porque eram pobres. Era uma coisa que vinha de muito longe, de tão longe que Chaktour já não se lembrava como tinha começado. Dizia para si próprio que a miséria que se prolongava para além dos homens. Apanhara-o desde a nascença e ele logo lhe pertencera, sem a menor resistência, visto que lhe estava destinada muito antes de ter nascido, ainda na barriga da mãe.
A criança estava sempre à espera que lhe explicassem porque eram pobres. Deixara de chorar, mas ainda havia muitas lágrimas dentro de si, todas as lágrimas das crianças miseráveis cujos sonhos são traídos pela vida.
— Escuta, pequeno, vai-te sentar num canto e deixa-me trabalhar. Se somos pobres é porque Deus nos esqueceu, meu filho.
— Deus! —, exclamou a criança. — E quando se lembrará ele de nós, meu pai?
— Quando Deus esquece alguém, é para sempre.
(...)


2 –  Acontece, pois,  que, e apesar da minha confessada falta de talento para olhar o “qwert” do meu computador e escrever coisas bonitas, tudo aquilo que os meus olhos vêem e os meus ouvidos ouvem não ajuda. Bem pelo contrário. Atente-se:
- Os trabalhadores dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo vítimas, entre outras maldades, de um criminoso assédio moral por parte do Estado continuam a ter as suas vidas sem rumo;
- Há no distrito mais de 15 mil desempregados;
- Os pescadores de Castelo de Neiva continuam a ser engolidos pelo mar, pois nunca mais é construído o portinho que os protegeria;
- As cantinas das escolas mantêm-se abertas,  durante a  quadra natalícia, para que cada vez mais crianças possam aconchegar os seus estômagos vazios;
- Micro, pequenas e médias empresas são obrigadas a fechar portas; asfixiadas pelos impostos e pela voracidade dos bancos;
- Os mais velhos de nós continuam a ter reformas e pensões de miséria;
- Aos funcionários públicos e da Administração Local tiraram-lhes o 13º e o 14º mês;
- Cortam na Saúde e na Educação;
- Cortam no apoio à Cultura, que é bem de primeira necessidade;
- Convidam os mais jovens e classificados de nós a emigrar;
- Uma sopa paga os mesmos 23% de IVA do que a mais cara jóia;
- Temos um primeiro-ministro que diz que os salários devidos aos trabalhadores do Estado são despesa;
- Aceita-se que o dr. Catroga aufira mais de 35 mil euros mensais na EDP e que o engº Jardim Gonçalves tenha uma reforma de 200 mil a cada 30 dias;
- Pagamos o 13º e o 14º mês às girls e aos boys escolhidos pelo dueto Passos & Portas;
- Só alguns se indignam com o facto de Assunção Esteves se ter reformado aos 42 anos e que os deputados tenham votado favoravelmente um orçamento da Assembleia da República que lhes permite continuar a receber o subsídio de férias e o subsídio de Natal, como se pode confirmar junto daqueles que representam o nosso distrito;
- O filho do engº Belmiro e a filha de José Eduardo dos Santos ganham milhões em bolsa e o comendador Amorim continuará a figurar na lista dos mais ricos do país.
Para estes, sim, as festas natalícias serão boas e felizes. Como sempre.
Para os outros, para os homens esquecidos de deus, que somos a imensa esmagadora maioria, as festas natalícias são um ritual.
Um ritual que evita termos de mentir aos nossos filhos, usando a mesma metáfora de Albert Cossery.
Mesmo que tal mentira evite a imediata condenação daqueles que nos assassinam com, evidente,  “frieza tecnocrática”.




*Albert Cossery (Cairo 1913-2008) Considerado um mestre do escárnio, Cossery foi também um profeta do prazer e da preguiça. Habitou o mesmo quarto do hotel La Louisiane, situado no coração de Saint-Germain-des-Prés em Paris, desde 1951. Foi amigo de Boris Vian, Jean Genet, Henry Miller e Albert Camus. “os homens esquecidos de deus” são uma tradução de Ernesto Sampaio para a “Antígona” (2002),
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 Crónica publicada no dia 24 de Dezembro no semanário




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