José Policarpo, cardeal patriarca, exerce o múnus em Lisboa, havendo nascido nas Caldas da Rainha, em 1936, ano de grandes clamores na Ibéria: a Revolta dos Marinheiros, em Portugal, a criação do Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, a Guerra Civil, em Espanha. O local e o tempo da aparição da futura Eminência aconselharia sentimentos de pudor e estremecimentos democráticos, então como hoje, época de hipersensibilidades e definições pró ou contra-civilizacionais. Bem conhece Dom José a heráldica caldense, materializada nos erectos falos da Autoridade e na figura esquiva do Povinho. Mas conforme o narrado nesta crónica da República, Dom José não liga ao Zé. Decididamente. Provocatoriamente.
Milagre do Sol ou terramoto ? No dia 13 do corrente, Dom José pregou e praguejou perante 150 mil fiéis, na tribuna de Fátima, assinalando o 95º aniversário do
milagre do Sol. Aproveitou o purpurado para desvalorizar e até censurar as manifestações populares contra a austeridade ou o roubo ou a
Arte de Furtar. [1] Certamente a crise não bateu, não bate e não baterá à porta do patriarca. No entanto, a grande maioria da audiência mariana que se dignou escutá-lo está a ser vítima de
confisco, esbulho, saque, terramoto fiscal, assalto à mão armada, bomba atómica. Dom José amaldiçoou as manifestações dos pagantes dos prejuízos do BPN, das vorazes PPP`s, dos submarinos de águas turvas, das malversões de fundos europeus, do regabofe de consultores e assessores, dos traficantes & corruptos, da agiotagem da Dona Merkel & de seus SS/Sócios Sanguessugas. O paramentado orador puxou dos galões da dogmática (que lhe é curricularmente cara) para advertir e instruir os peregrinos mais ou menos como se segue: Cordeiros do BPN, da UE e do FMI, manifestações, Filhos, só de fé, perdão, resig(nação). Nada de cólera profética e inquietação ética, muito menos de indig(nação) cívica. Andam por aí a cantar:
Acordai! Acordai! Haverá coisa mais bela do que uma pátria adormecida? Que ninguém vos acorde da inocência e da indigência. Recolhei a casa e ao seio da santa madre. A rua é local de todas as tentações. Não participeis no adeus ao Governo. Reservai os lenços brancos para o adeus à Virgem e para mostrar desagrado aos treinadores de futebol.
Pax germânica Com tal prédica, o lustre caldense pretendeu ofuscar e reconverter milhões de portugueses, reactualizando a mensagem de 1917, altura em que o astro-rei dançou e tanto bastou para que a História imediatamente se movesse: a 7 de Novembro eclodiu a Revolução Bolchevique; a 8 de Dezembro deu-se o Golpe de Sidónio Pais. Dom José algo terá lido na abóbada celeste que o incitou a uma cruzada contra as manifestações (orgânicas e inorgânicas). Diremos: contra certas manifestações. De facto, Dom José presidia a uma manifestação de massas, por ele transformada em contra-manifestação. De facto, sempre demasiadas eminências e reverências prezaram a manutenção da ordem no aprisco e a recondução de ovelhas tresmalhadas. A doutrina social da Igreja (que temporariamente constituiu um avanço conceptual e um activo evangélico) oscila, hoje, entre dois paraísos para os ricos (os fiscais, em vida, os da Grande Nebulosa Misterial, gozados os terrenos) e dois infernos para os pobres, principalmente para os que não acalmam os mercados, promovendo manifestações, vigílias e greves, naturalmente fora de recintos marianos e sem obedecer ao cantochão e ao cânone. Ocorre ainda uma coincidência (acidental ou planeada): a Igreja Romana é chefiada por um patriarca alemão e a Europa é comandada por uma matriarca alemã. Estamos sujeitos a um novo
diktat germânico. Se Pio XII, sendo italiano, foi justa ou incorrectamente considerado o
papa de Hitler , Bento XVI poderá vir a ser considerado o papa de Merkel. E Dom José, neste Redesenho do Mapa Imperial, será ou a Igreja consentirá que venha a ser o Cerejeira possível? Dado seu passado e dada a sua idade, sem grande espaço vital para recredibilizar o Verbo, Dom José arrisca-se a ficar como uma Cátedra da Merklândia e uma Catedral da
Teologia dos Mercados. Fonte Luminosa e pistola na batina Vamos ao Calendário das últimas décadas: em 1975, Mário Soares reuniu-se com o cardeal António Ribeiro, antecessor de Dom José e seu companheiro de incensos tabágicos, degustações místicas e confidências da
Ceia dos Cardeais. O patriarca da transição da ditadura (1971) concertou com o incréu Soares uma convocatória diocesana para a manif. da Fonte Luminosa; em 1975, Dom Francisco Maria da Silva, primaz das Espanhas, encabeçou, de pistola sob a batina, uma manif. contra a Revolução, que culminou com a sede do PCP em chamas;
[3] em 1982/1984/1995/2007, a Igreja mais legionária assanhou as hostes contra a despenalização da IVG, proclamando
o dever de resistência por todos os meios legítimos. [4] Felizmente para a Igreja e para o Povo, outros bispos, padres e numerosos cristãos defendem o direito e
o dever de resistência a medidas de usurpação de bens, rendimentos e direitos legítimos, atentatórias da justiça e da liberdade, da soberania institucional e da independência nacional. O Zé Povinho está a redescobrir, a densificar e a intensificar a democracia participativa, depois de continuados abusos e desenganos de eleitos sem consideração pelos eleitores. Os tais eleitos do Senhor ou do
Arco do Poder . A democracia representativa mostrou os seus limites e os seus desvios, as suas perversões e as suas capturas. Mas há casos de excepção. Dom José, ouviste falar do presidente da Câmara das Caldas da Rainha que, embora do PSD, principal partido do Governo, exprimiu apoio à manifestação da CGTP, que encheu e fez transbordar o Terreiro do Paço?
[5] Não estarás a ser mais passista e gasparista e troikano do que o edil? Não poderás ter abdicado do papel de denúncia e de irmandade? A Igreja prescindiu de qualquer relevante missão? O ídolo Ronaldo é, na alvorada do século XXI, o mais notório agente de cristianização da Península?
O Melhor Povo do Mundo Para terminar, Dom José, recordarei à Igreja uma passagem do cronista do Reyno:
[6] em 1383, sentava-se na cadeira episcopal Dom Martinho, que se terá escusado a mandar tocar os sinos a rebate para que o povo de Lisboa formasse um escudo à roda do Mestre de Avis contra Castela, que ambicionava ocupar o trono português. Martinho foi lançado de um torreão da Sé, caindo do céu aos pés da arraia, que lhe arrancou as roupas e arrastou o cadáver (nu, ensanguentado, politraumatizado) até ao Rossio, sendo entregue à algazarra do garotio e à volúpia dos cães. A evocação nada tem a ver com qualquer justificação da barbárie, Dom José. É apenas um lembrete para aqueles que consideram os portugueses um manso rebanho, de
brandos costumes. incapaz de violência contra o Poder, mau grado toda a violência do Poder. Já Spínola exaltava o
Bom Povo Português (o da maioria silenciosa). Escapou-se para o exílio e montou uma rede bombista. Gaspar também massacra
o Melhor Povo do Mundo . Quando irradiado, só terá propensão para montar uma rede bancária. O BPP e o MPM não serão apólice de seguro. São ficções adulatórias. Não passam de
slogans de conveniência. Elogiar a vítima faz parte do
pathos dramatúrgico. O algoz ostenta ar compungido para aliviar a repugnância do acto. É dos Manuais de Etiqueta dos Inquisidores.
Explosão social no horizonte – alertam ex-presidentes da República e outros sismógrafos multimédia. Para já,
o melhor do mundo chama
gatuno e
o pior do mundo a quem o enaltece e alguns inorgânicos ameaçam
tirar-lhe a tosse. Veremos como a arraia do século XXI corresponderá aos piropos de Gaspar, criatura com fácies de homem-rã do Além, mas, na verdade, braço executório das forças do capital, da ocupação e da capitulação.
Dom José, quanto ao que vos respeita, que o Sumo Pontífice vos permita resignar nos próximos meses, em paz com as ruas, procurando retiro espirituoso nas Caldas de Dona Leonor & Raphael Bordallo Pinheiro.